as boas notícias da catita #60
aquela sobre a falácia do sorriso no rosto e um objeto de desejo

ele está longe de ser uma boa notícia, mas esse texto (ou o assunto) tem me rondado, incomodado, povoado pensamentos e sentimentos há algum tempo. não é de hoje que não falar sobre a tristeza tem me deixado triste. e tampouco é de hoje que esse "sorriso no rosto" forçado tem me deixado desconfortável.
o sorriso no rosto é uma das armadilhas emocionais mais persistentes e sutis da nossa sociedade, nem sempre ele é sinal de leveza. por trás da frase, aparentemente inofensiva, “vamos sorrir”, existe uma cobrança silenciosa, muitas vezes cruel, que desautoriza o sofrimento e empurra para a margem tudo o que escapa da alegria performada.
sorrir virou aquele gesto sempre esperado, uma convenção social e, muitas vezes, só a forma mais polida de esconder o cansaço. mas há cansaços que são profundos demais para caber num riso.
há alguns meses, o escritor anu gupta, fundador de uma das maiores plataformas de boas notícias do mundo, compartilhou, com coragem e vulnerabilidade, sua dificuldade de sorrir. falou sobre ausência de propósito, sobre dor, dúvida, cinismo e um estado depressivo. e foi justamente esse óbvio que me tocou: mesmo os otimistas sofrem. e talvez sofram mais, porque esperam da vida, e de si mesmos, o brilho constante, o bem, o alívio.
essa ideia de que todo sofrimento deve ser transmutado em superação imediata é uma violência emocional. a dor precisa de tempo, de espaço, de nome. quando pedem para que a gente sorria diante do que machuca, estão, na prática, nos dizendo que nossa dor é incômoda demais para existir em público.
o "vamos sorrir" é carregado de privilégio também. nem todo mundo tem o direito de parecer triste. há corpos para os quais o silêncio é lido como ameaça. há pessoas para quem a neutralidade já é vista como desvio. sorrir, nesses casos, não é escolha, é estratégia de sobrevivência.
por muito tempo, sorrir foi visto como um sinal de boa educação, de maturidade, de força. mas sorrir sempre não é força, é exaustão. é esconder, é podar, é adaptar-se a um ideal de comportamento que não contempla a dor, o luto, a dúvida, o colapso. e lembremos que toda emoção negada aqui cobra um preço acolá.
há também um recorte geracional nessa cobrança. nossa geração (millennials) foi forjada com frases como "engole o choro", "seja forte", "não faz drama". fomos ensinados a parecer bem antes de estar bem. com tropeços, mal e mal conseguimos nomear o desconforto.
em uma sociedade obcecada pela produtividade, pelo desempenho e pela positividade, o sofrimento passou a ser visto como um erro de sistema. segundo byung-chul han, é o sofrimento que nos permite pausar, refletir e nos transformar. ele diz que o sofrimento é a linguagem da alteridade. é por meio dele que nos conectamos com o que é mais humano, mais profundo, mais verdadeiro. ao negar o sofrimento, negamos também a possibilidade de encontro e de sentido.
há beleza na tristeza. há sabedoria no medo. há potência no desconforto. sorrir é bonito, sim, quando vem depois do choro, quando é escolha, quando é sincero. o sorriso, assim como o silêncio, precisa ser uma possibilidade, não uma obrigação.
talvez a gente precise começar a perguntar menos “por que você está assim?” e mais “quer um tempo?” ou “posso ficar aqui com você?”. reconhecer o outro em sua inteireza é um gesto de afeto. e permitir-se ser reconhecido também.

no fim, a gente não vive de sorriso no rosto. nem a narcisa vive. a gente vive de emoções, todas. e quando nenhuma delas precisar ser disfarçada, talvez aí sim, sorrir tenha um sentido real.
talvez. porque tem gente que só não quer sorrir.
por hoje, sem mais,
catita :)
tem cicatrizes na mão direita. são mínimas, ninguém dá por elas. a maior de todas, na horizontal, não chega a ocupar o espaço que vai do mindinho ao anelar. é sempre aí que se escondem as suas três cicatrizes: entre os dedos. se pela medida delas já seria difícil que alguém as visse, o fato de se alojarem nesse lugar específico só faz com que sejam praticamente imperceptíveis. nem ele, que desde sempre é o dono das próprias mãos, costuma lembrar-se daquelas marcas. mas esta manhã lembrou-se. estava tão sem saber o que fazer a uma daquelas tristezas súbitas que de vez em quando surgem sem aviso para atrapalhar a vida de um homem, que resolveu lavar as mãos. não é de grandes tiradas, nunca foi. ele é mais o tipo dos que fazem uso dos gestos banais para afastar a escuridão. dirigiu-se então à pia, abriu a água fria, juntou-lhe sabão, e esfregou aquilo na pele o mais que pôde. lava sempre o corpo nos vincos dele, lembrou-se. era assim que lhe dizia a sua mãe. foi por seguir as antigas instruções que, ao passar o dedo esquerdo entre os dedos todos da outra mão, sentiu um relevozinho. lá estava ela, a terceira cicatriz. mais alta que as outras, mais imóvel, um pouco mais estranha. agora o homem observa-a. tal como acontece com as outras duas, não sabe o que a causou. sabe, isso sim, que a terceira cicatriz é a mais recente. fica entre o dedo médio e o indicador e vem na vertical, como um rastilho de disparo. o homem não sabe mesmo como ela foi parar-lhe à mão, mas sabe o que agora diz ao espelho:
— eu, acordado, sou o homem banal e funcional. mas o meu duplo, aquele que dorme, com certeza passa noites inteiras carregando pedras, ou lapidando diamentes, ou penteando crinas duras com um pente de marfim.
[matilde campilho, flecha, pp 75-76]